
Compositor. Cantor. Instrumentista. Cineasta. Artista plástico.
Descendente de libaneses. Cresceu em um ambiente musical, ouvindo seu pai tocar alaúde e sua mãe cantar. Em 1940, ingressou no Conservatório de Música de Marília, São Paulo, para estudar piano e teoria musical. Seis anos depois, mudou-se com a família para a capital. Nessa época, costumava tirar de ouvido as harmonias de música popular. Em 1949, transferiu-se para Santos, onde trabalhou na ZYH-3, Rádio Cultura de São Vicente, como discotecário, locutor, operador de som e redator de textos. Atuou também como pianista na boate Recreio Prainha.
Em 1950, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como locutor na Rádio Vera Cruz. Ainda nesse ano, iniciou sua carreira profissional, como pianista de casas noturnas. Cursou a Escola Nacional de Música. Estudou com o Maestro Guerra Peixe (harmonia, contraponto e orquestração) e com o Maestro Ruffo Herrera (música aleatória). Ainda em 1950, conheceu Tom Jobim, vindo a substituí-lo como pianista da Boate Posto 5, quando o compositor foi convidado para trabalhar como arranjador contratado da gravadora Continental.
Em 1952, começou a compor e a cantar, ainda se apresentando como João Mansur (sobrenome materno). Trabalhou durante oito anos como pianista da casa noturna Chez Colbert, onde entrou em contato com a música portuguesa. Nesse espaço, começou a cantar canções de Dorival Caymmi, Tito Madi e Lucio Alves. Ainda em 1952, foi convidado para fazer um teste de ator para o filme “A caminho da vitória”. Ganhou o papel, mas a companhia pegou fogo e o filme não foi realizado. A experiência, entretanto, despertou-lhe o gosto pelo trabalho de ator.
Em meados da década de 1950, viajou para São Paulo para participar de um programa da TV Tupi, acompanhando ao piano um primo que tocava gaita de boca. Nessa ocasião, foi convidado para fazer um teste para ator. Aprovado, foi contratado pela emissora com o nome de Sérgio Ricardo e passou a dividir-se entre a televisão e a música.
Trabalhou no “Grande Teatro Tupi” (RJ) e na “TV de Vanguarda” (SP), além de ter atuado como redator, ator e cantor do programa “Balada” da TV Continental (RJ). Mais tarde, foi contratado pela TV Rio como galã de novelas. Nessa emissora, atuou na montagem do teleteatro semanal “Estúdio B”, ao lado de grandes atores da época, e no programa “Noite de Gala”.
Seu primeiro registro fonográfico foi uma participação como pianista no disco “Dançante nº 1”, lançado pela gravadora Continental. Em seguida, foi levado por Sylvinha Telles para mostrar suas composições a Aloysio de Oliveira, na gravadora Odeon. O diretor musical achou sua obra muito avançada, não compatível com o mercado, e sugeriu que o compositor atuasse em trilhas sonoras para cinema.
Seu trabalho de compositor foi registrado pela primeira vez pela cantora Maysa, que gravou “Buquê de Isabel”. Nessa época, teve despertado seu interesse pelo violão ao ouvir João Gilberto tocar.
Gravou seu primeiro disco na RGE como intérprete das canções de Nazareno de Brito “Vai jangada” e “Bronzes e cristais” (c/ Alcir Pires Vermelho). Em seguida, lançou um outro 78 rpm, em que registrou pela primeira vez uma música de sua autoria: “Cafezinho”.
Apresentado ao pessoal da bossa nova por Miele, participou, em 1958, do show realizado no Grupo Universitário Hebraico e, no ano seguinte, do I Festival de Samba Session realizado no Teatro de Arena da Faculdade de Arquitetura da UFRJ.
Em 1960, gravou o LP “A bossa romântica de Sérgio Ricardo”, lançado pela Odeon, com destaque para sua canção “Pernas”.
Obteve muito sucesso, em seguida, com sua composição “Zelão”, que já apresentava uma ruptura com a temática “amor, sorriso e flor” da bossa nova.
Em 1962, viajou para os Estados Unidos, convidado pelo Itamaraty, para representar o Brasil no Festival de Cinema de São Francisco, classificando em 2º lugar o curta-metragem “O menino da calça branca”, fotografado por seu irmão, Dib Lufti, e montado por Nélson Pereira dos Santos. Participou no filme como roteirista, diretor, autor da trilha sonora e ator. Ainda nesse ano, participou do histórico “Festival de Bossa Nova”, realizado no Carnegie Hall de Nova York (EUA), ao lado de Carlos Lyra, Tom Jobim, Roberto Menescal, João Gilberto e Sergio Mendes, entre outros. Apresentou-se, voz e violão, com suas canções “Zelão” e “Nosso olhar”. Foi, também, encarregado pela revista “O Cruzeiro” para cobrir o evento.
Permaneceu durante oito meses nos Estados Unidos, apresentando-se em boates como o Village Vanguard, onde atuou ao lado de Herbie Mann. Em seguida, foi convidado para uma temporada de quinze dias na Riviera Francesa.
Em 1963, retornou ao Brasil, ligando-se ao Centro Popular de Cultura da União Brasileira dos Estudantes (CPC da UNE) através de Chico de Assis. Começou, nessa época, a participar do cinema novo, trabalhando uma temática social predominantemente nordestina. Ainda nesse ano, dirigiu o longa-metragem “Esse mundo é meu”, que contou com fotografia de Dib Lufti, montagem de Ruy Guerra e trilha sonora de sua autoria. Também em 1963, compôs (c/ Gláuber Rocha), escreveu os arranjos e interpretou, ao estilo dos cantadores nordestinos, a trilha sonora, lançada em disco, de “Deus e o diabo na Terra do Sol”, filme de Gláuber Rocha. Ainda nesse ano, gravou o LP “Um senhor talento”, lançado pela Elenco.
Em 1964, viajou para o exterior, convidado pelo governo brasileiro para participar dos festivais de cinema do Líbano e de Gênova com “Esse mundo é meu”. O filme foi premiado no Festival de Cinema do Líbano e recebeu destaque na revista francesa “Cahiers du cinema”. Nesse ano, filmou no Líbano o média-metragem “O pássaro da aldeia” (“Taire in Caire”), produzido para o governo daquele país.
Voltou para o Brasil em 1965 e estreou, no Teatro de Arena de São Paulo, o show “Esse mundo é meu”, com roteiro e direção de Chico de Assis, e a participação de Toquinho (violão) e Manini (atabaque). Ainda nesse ano, atuou como compositor e arranjador da trilha sonora de “Terra em transe”, filme de Gláuber Rocha, e compôs as músicas de “O coronel de Macambira”, peça teatral de Joaquim Cardoso.
Em 1967, gravou “A grande música de Sérgio Ricardo”, LP lançado pela Philips. Nesse mesmo ano, participou do II Festival de Música Popular Brasileira (TV Record), classificando a canção “Beto bom de bola”. Na reapresentação das finalistas, foi impedido de cantar sua música pelas vaias do público presente. Tentou dizer algumas palavras, mas não conseguiu se fazer ouvir. Foi desclassificado do evento, após quebrar seu violão e atirá-lo sobre a platéia.
Participou ainda de outros festivais de música, como a Bienal do Samba no Rio de Janeiro, com “Luandaluar”, o Festival da TV Excelsior de São Paulo, com “Girassol”, o Festival Internacional da Canção, com “Canto do amor armado”, classificada entre as 10 finalistas, e o Festival de Música Popular Brasileira (TV Record, 1968) com “Dia da graça”, classificada em 5º lugar. Representou o Brasil no Festival da Canção de Protesto da Bulgária, onde suas músicas foram interpretadas por Geraldo Vandré.
Em 1968, apresentou-se no Teatro de Arena de São Paulo com o show “Sérgio Ricardo e a praça do povo”, escrito com Chico de Assis e dirigido por Augusto Boal. Ainda nesse ano, escreveu o roteiro musical para a peça de Ariano Suassuna “O auto da compadecida”, levada ao cinema sob a direção de George Jonas.
Em 1970, lançou o longa-metragem “Juliana do amor perdido”, cujo roteiro foi escrito em parceria com Roberto Santos. O filme contou com fotografia colorida de Dib Lufti e foi apresentado pela primeira vez no Museu de Arte Moderna (RJ). Ainda em 1970, gravou o LP “Arrebentação”, lançado no ano seguinte pela Equipe.
Lançou, em 1973, o LP “Piri, Fred, Cássio, Franklin e Paulinho Camafeu com Sérgio Ricardo” e, no ano seguinte, o LP “A noite do espantalho”, trilha sonora de seu filme homônimo rodado em Nova Jerusalém (PE), ambos pela gravadora Continental.
Em 1975, lançou o LP “Sérgio Ricardo”.
Em 1979, gravou “Do lago e cachoeira”, LP também lançado pela Continental.
No ano seguinte, participou do Festival de Varadero em Cuba, ao lado de Chico Buarque, e lançou um LP com Geraldo Vandré.
Em 1983, o Museu da Imagem e do Som de São Paulo realizou a “Semana Sérgio Ricardo”, apresentando filmes, pinturas, discos, livros e espetáculos de sua autoria.
Compôs, com Ziraldo, a trilha sonora de “Flicts”, lançada em disco com o Quarteto em Cy e o MPB-4. Compôs e escreveu os arranjos da trilha sonora de “Estória de João-Joana”, cordel de Carlos Drummond de Andrade, gravada pela Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e lançada em disco, em 1985.
Compôs trilhas musicais de vários filmes de curta-metragem como “Traço e cor”, “Voz do poeta” e “O espetáculo continua”, entre outros.
Em 1994, apresentou-se em Angola, Guiné Bissau e Lisboa, onde gravou um disco com músicas africanas, portuguesas e brasileiras.
Dois anos depois, foi contemplado com o Prêmio Candango do Festival de Brasília, pela autoria da trilha sonora de “O lado certo da vida errada”, filme de Otávio Bezerra.
Compôs as trilhas musicais da minissérie “Zumbi dos Palmares” (1996) e da novela “Mandacaru” (1997), ambas realizadas pela TV Manchete.
Em 1999, o espetáculo “Estória de João-Joana”, encenado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, marcou sua volta à cena artística. O musical contou com a participação de Chico Buarque, Elba Ramalho, Alceu Valença, Telma Tavares e Zélia Duncan. Esse elenco revezou-se, na segunda parte do espetáculo, interpretando os maiores sucessos do compositor. O show foi gravado posteriormente nos estúdios da Rádio MEC, para constituir um CD lançado em 2000 pelo selo Rádio MEC.
Lançou, em 2001, o CD “Quando menos se espera”.
Dirigiu, para a Prefeitura de Niterói, o projeto “Palco Livre, realizado durante dois anos na Lona da Cantareira.
Em abril de 2005, inaugurou, na Villa Riso (RJ), a exposição “Transparência”, com suas pinturas mais recentes.
Embora trabalhe geralmente sem parceiros, compôs algumas músicas para letras de outros autores. É autor de uma única letra para música de outro compositor: “Canto de boiadeiro” (c/ Bororó Felipe).
Publicou os livros “Quem quebrou meu violão” (Editora Record, 1991), um ensaio sobre a cultura brasileira no período 1940-1990, e “Elas”, uma coletânea de suas poesias.
Em 2011, foi tema da matéria “Retrato do artista de mil cordas”, assinada por Mônica Sinelli, e ilustrou a capa da “Revista Carioquice” (edição outubro/novembro/dezembro), publicada pelo Instituto Cultural Cravo Albin.
Em 2012, marcando a abertura dos eventos comemorativos de seu 80º aniversário, o Instituto Cultural Cravo Albin inaugurou a exposição “Sergio Ricardo – 80 anos”, com curadoria e concepção de Marina Lufti e Maíra Abrahão, e direção geral de Bete Calligaris e Ivan Fontes. Nessa oportunidade, recebeu ainda o Diploma Tenório Júnior, do Clube de Jazz e Bossa, do mesmo instituto. Nesse mesmo ano, apresentou, em Brasília, o cordel de Carlos Drummond de Andrade “Estória de João Joana”, musicado por ele, ao lado de João Gurgel, Marina Lutfi, Elba Ramalho, Alceu Valença e Geraldo Azevedo. Ainda em 2012, participou do projeto “MPB na ABL”, realizado no Teatro Raimundo Magalhães Jr. da Academia Brasileira de Letras (RJ), dentro da série “MPB na ABL”, sendo apresentado e entrevistado em cena por Ricardo Cravo Albin.
Sobre sua obra, escreveu Chico de Assis: “De Buquê de Isabel a Zelão, de Zelão a Conversação de paz, fica azoando um bordão permanente nas coisas de Sérgio. Uma vida melhor para o homem, paz em canto ferro e música para a humanidade. O poder do verso e da música feito ferramenta de um futuro mais digno para a condição humana.”.
Em 2019 aos 87 anos, após período sem apresentações, se apresentou em show idealizado por seus filhos cantores Marina Lutfi, Adriana Lutfi e João Gurgel, com participações dos músicos Lui Coimbra, Marcelo Caldi e Alexandre Caldi. O espetáculo denominado “Cinema na música” ocorreu no Teatro Municipal da cidade de Niterói (RJ) e originou CD e DVD, marcando a despedida dos palcos do cantor. Também participaram Alceu Valença, Geraldo Azevedo, João Bosco, Zé Renato, Antônio Pitanga e Jards Macalé.
Em 2020, após contrair Covid-19 e se recuperar, sofreu uma unsuficiência cardíaca e faleceu aos 88 anos.
(Trilha sonora do filme)
(Trilha sonora do filme)
(Trilha sonora do filme)
ALBIN, Ricardo Cravo. Dicionário Houaiss Ilustrado Música Popular Brasileira – Criação e Supervisão Geral Ricardo Cravo Albin. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro: Instituto Antônio Houaiss, Instituto Cultural Cravo Albin e Editora Paracatu, 2006.
AMARAL, Euclides. Alguns Aspectos da MPB. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2008; 2ª ed. Esteio Editora, 2009.
AMARAL, Euclides. O Guitarrista Victor Biglione & a MPB. Rio de Janeiro: Edições Baleia Azul, 2009. 2ª ed. Esteio Editora, 2011. 3ª ed. EAS Editora, 2014.
COSTA, Cecília. Ricardo Cravo Albin: Uma vida em imagem e som. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2018.
Os filmes de Sérgio Ricardo são hoje tão pouco conhecidos quanto valiosos. Ele – que começou com uma curta que é uma jóia, “O Menino da Calça Curta”, 1961, (em parceria com Nelson Pereira dos Santos e que ganhou prêmios em diversos festivais do mundo) – prosseguiu com o segundo curta “Esse Mundo é Meu” (montagem de Ruy Guerra), também ótimo, especialmente pela música-título, uma pura obra-prima da MPB. Aliás, como nunca ouço comentários mais vivazes sobre o cineasta Sérgio Ricardo, quero registrar aqui meu pasmo pelo silêncio que se faz sobre seus dois maravilhosos longas, os musicais “Juliana dos Anos Perdidos” e “Noite do Espantalho” (rodado em Nova Jerusalém, PE). Nunca esquecendo, é claro, das suas trilhas sonoras para “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (uma outra obra-prima) e “Terra em Transe”, ambas de Glauber.
Fechado os parênteses para saudar o cineasta, vamos ao que interessa, o Sérgio compositor. E que compositor! Outro dia, reouvindo Maysa, me deparei com “Buquê de Isabel”, de 1958, o primeiro sucesso de Sérgio, em pleno começo da bossa nova. Mesmo aí, na felicidade eterna apregoada na primeira fase dos padrões literários bossa novistas, o nosso Sérgio já sinaliza seu sentimento para a comiseração e para a solidariedade. Apesar da deliciosa “Pernas” – cuja dona nunca soube quem era – Sérgio Ricardo logo abandonaria o “sol – sal – mar – azul” do começo do novo movimento musical para enveredar por caminhos mais barras pesadas. Logo ele, cuja titularidade para exercitar a bossa nova vinha desde 1952, quando substituiu como pianista Tom Jobim em boate de Copa, ocasião em que era admirado por gente como Johnny Alf e João Gilberto.
Na efervescência dos anos iniciais da década de 60 Sérgio lançou um marco da MPB. O seu “Zelão” (“Todo o morro entendeu/quando Zelão morreu) foi muito mais que uma chicotada de ferro e fogo na pasmaceira dourada em que ainda gravitava a bossa nova. Zelão ajudou a abrir as consciências telúricas de seu tempo, juntando em torno da denúncia músico-social personalidades como Nara Leão, Geraldo Vandré, Carlos Lyra, etc.
Denúncia, participação, solidariedade era – e sempre foram – palavras de ordem de Sérgio Ricardo. Levadas a uma consequência de pura ira pessoal no episódio que envolveu sua participação no II Festival de MPB da TV Record em São Paulo (1967), quando, ao tentar cantar sob vaias “Beto Bom de Bola”, ele parou a música, soltou um sonoro palavrão e arremessou o violão para o público. Com fúria.
Ricardo Cravo Albin