
Cantora.
Nasceu no bairro carioca de Olaria, na Rua Angélica Mota, nº 34, filha de Dárcio Custódio Fereira, funcionário da Câmara dos Deputados. Aos oito anos foi matriculada num grupo escolar em Olaria e mais tarde formou-se em Contabilidade pelo Instituto Rui Barbosa. Aprendeu sozinha sua primeira música ao violão, “Valsa de cristal”, observando as aulas que suas irmãs tomavam com uma professora. O pai, surpreso e entusiasmado, resolveu presenteá-la com um violão. Apesar disso, só passou a estudar música mais tarde, com Aída Gnattali (solfejo e leitura musical). Em casa chamavam-na de Ceminha. Antes de decidir-se pela carreira de cantora, freqüentava assiduamente os programas radiofônicos de auditório, onde não perdia a oportunidade, se o animador solicitasse aos ouvintes da platéia, de subir ao palco e cantar um sucesso estrangeiro (achava que não poderia cantar em português por causa dos seus erres muito carregados). Casou-se em fins da década de 1940 e desta união teve dois filhos, Vera Lúcia e Hélio. O casamento não a fez feliz, pois o marido, Cleido, passou a agredi-la em brigas constantes. Depois de alugar e mobiliar um apartamento em Copacabana, com suas próprias posses, acumuladas com seu trabalho como cantora, deixou o marido, que passou a ameaçá-la de morte. Logo depois entrou com uma ação de desquite litigioso, da qual saiu vitoriosa. Um dia, declararia: “Nunca tive ódio dele, apesar das surras que me deu e de tudo quanto me fez passar”. Depois de separada, passou a viver com o cantor Jorge Goulart, uma longa e definitiva união, que, segundo ela, foi seu “grande amigo nos dias difíceis e o companheiro fiel dos dias de glória”. Em 1961 submeteu-se a uma plástica de nariz. Costumava dizer: “Meu nariz nasceu errado”. Em 1963, sua filha, Vera Lúcia, foi eleita Miss Brasil. O filho, Hélio, estudou na França e, segundo Nora, “é um bom baterista”. Por conta e sua atuação política juntamente com Jorge Goulart no Partido Comunista, teve que se auto exilar após o golpe militar de 1964.
Em 1979 passou por sérios problemas de saúde por conta de um câncer na bexiga, do qual se recuperou. Em 1992, depois de 39 anos de vida em comum, casou-se com o cantor Jorge Goulart. Meses depois, quando se apresentava em um show no Fluminense (clube carioca), sofreu um acidente vascular cerebral, que lhe deixou seqüelas, impedindo-a de voltar aos palcos. Continuou residindo no Rio de Janeiro com seu companheiro, Jorge Goulart.
Faleceu em hospital do bairro da Tijuca, Rio de Janeiro vítima de falência múltipla dos órgãos devido a câncer generalizado provocado por efizema pulmonar. Seu viúvo, Jorge Goulart, programou um espetáculo em sua homenagem para o fim de 2003 no Teatro João caetano.
Antes de se lançar profissionalmente, no final dos anos 1940, fez parte do Fã-clube Sinatra-Farney, que promovia festas na residência do cantor Dick Farney, tendo à bateria seu irmão Cyl Farney. Nesses encontros informais, já mostrava seu talento, cantando com os outros participantes, como Johnny Alf e Carlos Guinle os sucessos de Frank Sinatra e Dick Farney. Esses “saraus” acabaram sendo o passaporte para sua profissionalização. Começou sua carreira no início dos anos 1950, incentivada pelo na época famoso Dr. Infezulino, que também era o nome de um programa radiofônico, pseudônimo de Osvaldo Elias, que a apresentou ao diretor da Rádio Tupi, Sérgio Vasconcelos. Passou a atuar na programação noturna daquela emissora no programa “Fantasias Musicais”, apresentado por José Mauro, com o apoio de Lúcio Alves, que a convenceu de dedicar-se apenas ao repertório estrangeiro com canções como “Stormy weather” e “The man I love”. Com o nome de Nora May, instituído por José Mauro, passou a ser conhecida do público. Um dia, recebeu a carta de uma fã de Teófilo Otoni, Nini Xavier, endereçada a Nora Ney (grafado exatamente assim). A cantora mostrou a carta ao diretor Sérgio Vasconcelos, que achou oportuno acatar o entendimento da moça mineira: já que a fã havia entendido Ney, que fosse realmente Nora Ney seu novo nome artístico. Logo depois foi contratada pela mesma Rádio Tupi, com ótimos salários. Na ocasião foi convidada por Almirante para substituir a cantora Aracy de Almeida que estava de férias, nos programas daquela emissora. Apesar de sua insegurança em cantar música brasileira, tanto Almirante como o produtor Haroldo Barbosa insistiram, e ela passou a interpretar as músicas de Noel Rosa, sucessos na voz de Aracy de Almeida como “Último desejo” e “O X do problema”, entre outras. Como se saiu muito bem, Haroldo Barbosa decidiu alavancar sua carreira, escolhendo um repertório de músicas só de compositores do primeiro time: Caymmi, Noel Rosa, Ary Barroso e Carioca. Logo o produtor estaria afirmando entusiasmado: “Você não vai cantar nunca mais música estrangeira”. A cantora chegou a declarar que atribui a Haroldo seu ingresso na música popular brasileira.
No início dos anos 1950 foi convidada por Nicolino Cópia, a pedido de Caribé da Rocha, para atuar como cantora em shows noturnos no Copacabana Palace Hotel. Recusou o convite, pois seu marido não gostou da idéia de vê-la se apresentando à noite. Só depois de muita insistência dos produtores, e do convite pessoal ao marido da cantora, este resolveu autorizar sua atuação e acompanhá-la nos shows. Na verdade, esse foi o grande trunfo de Nora Ney para tornar-se independente (seu salário era altíssimo) e decidir terminar seu casamento infeliz. Em 1952 foi convidada para gravar pela Continental. Seu primeiro disco saiu nesse mesmo ano com “Menino grande”, de Antônio Maria e “Quanto tempo faz”, de Paulo Soledade e Fernando Lobo. Apesar da apreensão dos produtores em lançar um compositor ainda desconhecido como Antônio Maria, o “lado forte” do disco foi mesmo “Menino grande”, que passou a ser um dos maiores sucessos do repertório da cantora. Em seguida, ainda no mesmo ano, gravou “Ninguém me ama”, que, segundo Jairo Severiano, é “o paradigma do samba-de-fossa e sucesso nacional”. De fato, o sucesso dos sambas-canções veio juntamente com a onda dos boleros que invadiu o país nos fins da década de 1940. A interpretação de “Ninguém me ama” marcou definitivamente sua carreira de cantora das dores amorosas. Com esse disco, a cantora conquistou o primeiro Disco de Ouro da história da fonografia brasileira, inspirando até o cantor Nat King Cole a gravar essa música, poucos anos depois, quando o americano esteve no Rio em tournê.
Em 1953, gravou outro sucesso, o samba “De cigarro em cigarro”, de Luís Bonfá. No mesmo ano, gravou o samba “Preconceito”, de Antônio Maria e Fernando Lobo, a guarânia “Índia”, de Assunción Flores e Guerrero e o samba-choro “É tão gostoso, seu moço”, de Mário Lago e Chocolate. Ainda em 1953 foi eleita Rainha do Rádio. Também no mesmo ano, gravou na Todamérica a canção “Luzes da ribalta”, de Charles Chaplin com versão de Antônio Almeida e João de Barro e o samba Felicidade”, de Antônio Almeida e João de Barro. No ano seguinte, gravou o samba canção “Que saudade é esta”, de Peterpan, a canção fado “Canção de Portugal”, de Garoto e José Vasconcelos e os sambas “Aves daninhas”, de Lupicínio Rodrigues, outro grande sucesso e “O que foi que eu fiz”, de Augusto Vaseur e Luiz Peixoto. Em 1955, gravou os sambas “Gosto, gosto de você”, de Celso Guimarães, “Não diga não”, de Tito Madi e Georges Henry e “Meu lamento”, de Ataulfo Alves e Jacob Bittencourt. No mesmo ano, gravou com Ataulfo Alves e suas pastoras os sambas “Vou de tamanco”, de José Gonçalves e Zilda Gonçalves e “Se a saudade me apertar…”, de Ataulfo Alves e Jorge de Castro. Ainda no mesmo ano, lançou seu primeiro LP que trazia entre outras composições, “Quando a noite me entende”, de Vinícius de Moraes e Antônio Maria, “Se eu morresse amanhã”, de Antônio Maria e “O que vai ser de mim”, de Tom Jobim, uma das músicas iniciais do maestro, que, por sinal, também fez alguns arranjos (nesta época) para a cantora. Também em 1955, tornou-se a primeira cantora a gravar rock no Brasil registrando o sucesso “Rock around the clock”, de Bill Haley. Em 1956, gravou o choro “Eu ri de chorar”, de Ivon Cury, o samba canção “Quando o amor vai embora”, de Valzinho e Evaldo Rui e os sambas “Só louco”, de Dorival Caymmi e “Não há mais segredo”, de Geoerges Moran e Teófilo de Barros Filho.
Em 1957, gravou os sambas “Se o negócio é sofrer”, de Mário Lago e Chocolate, “Não vou chorar”, de Norival Reis e Antônio Almeida, “Eu e Deus”, de Evaldo Gouveia e Pedro Caetano e “Saudade da Bahia”, de Dorival Caymmi, a valsa “Chove lá fora”, de Tito Madi e o samba canção “Franqueza”, de Dênis Brean e Osvaldo Guilherme. Em 1958, gravou na Continental os sambas canção “Duas notas, nada mais”, de Carlos Monteiro de Souza e Alberto Paz e “Quem é ela?”, de Jota Júnior e Oldemar Magalhães. No mesmo ano, passou a gravar na RCA Victor e lançou o samba “Vai, mas vai mesmo”, de Ataulfo Alves que acabou sendo o seu único sucesso do chamado “repertório carnavalesco”, já que foi uma das músicas muito bem aceitas pelos foliões naquele ano, e o samba canção “Castigo”, de Dolores Duran. No mesmo ano, gravou o samba canção “Solidão”, de Dolores Duran, outro de seus sucessos e o samba “Pra falar com meus botões”, de Cyro Monteiro e Dias da Cruz. A seguir, saiu em excursão para vários países do mundo, ao lado de Jorge Goulart, divulgando a música popular brasileira. Apresentou-se na América do Norte e do Sul, na Europa, na África e no Oriente Médio, tendo sido uma das primeiras cantoras brasileiras a fazer temporadas nos chamados “países da cortina de ferro”, leste europeu. Em 1959, gravou o samba “Sorria”, de Wilson Batista e Jorge de Castro e o samba canção “Muito agradecida”, de Lúcio Alves e Nestor de Holanda. A década de 1950 transcorreu com vários discos e a criação de um imenso fã-clube da cantora, que já havia marcado um estilo e criado escola.
Em 1960, gravou os sambas “Você nasceu pro mal”, de Ataulfo Alves e “Teleco teco nº 2”, de Nelsinho e Oldemar Magalhães. No mesmo ano, lançou o LP “Ninguém me ama”, com destaque para a música título, de Fernando Lobo e Antônio Maria. Em 1961, gravou o bolero “Desencontro”, de N. Claveli com versão de Nazareno de Brito, o samba canção “Luz que não se apaga”, de Britinho e Fernando César e os sambas “Pra que voltar?”, de Nonato Buzar e “Cansei de rock”, de Moacir Falcão e Armando Cavancânti. Em 1962, foi para a gravadora Mocambo e gravou o samba “João da Silva”, de Billy Blanco e o samba cançao “E a vida continua…”, de Jair Amorim e Evaldo Gouveia. No ano seguinte, lançou o samba canção “Mundo diferente”, de Alcyr Pires Vermelho e Luiz Oliveira Maia e o samba “Hora final”, de Dora Lopes e Genival Melo.
No início dos anos 1970 fez temporada com o marido na Boate Feitiço da Vila, em Belo Horizonte (MG). Em 1972 gravou pela Som Livre o LP “Tire seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor”, onde incluiu as faixas “Conselho”, de Denis Brean e Osvaldo Guilherme, “Quando eu me chamar saudade”, de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito e “A flor e o espinho”, de Alcides Caminha, Guilherme de Brito e Nelson Cavaquinho, além de antigos sucessos. Em 1974 participou, com Jorge Goulart, do show Brazilian Follies, no Hotel Nacional do Rio de Janeiro (esse “show” foi reeditado cinco anos depois). Em 1977, lançou com Jorge Goulart o LP “Jubileu de prata”, pela Som Livre, no qual interpretou, entr outras, “Ronda”, de Paulo Vanzolini, “Se eu morresse amanhã de manhã”, de Antônio Maria e “Canção de quem espera”, de Glória Gadelha e Sivuca. Em 1979, participou com o marido Jorge Goulart do projeto Seis e Meia, na Sala Funarte/ Sidney Miller, em “show” de grande sucesso, intitulado “Casal vinte”, que contou com roteiro e direção de Ricardo Cravo Albin. No ano seguinte, na mesma sala, apresentaram o espetáculo “Roteiro de um boêmio”, sobre a vida e a obra de Lupicínio Rodrigues.
Em 1982, em comemoração aos 30 anos de união com Jorge Goulart, ambos realizaram o espetáculo “De coração a coração”, no Teatro Armando Gonzaga, em Marechal Hermes, no Rio Janeiro (RJ). Em 1985 participou, com o cantor Jamelão, do Projeto Pixinguinha, apresentando-se em várias cidades brasileiras (Curitiba, (PR), Goiânia, (GO), Florianópolis, (SC) e Brasília, (DF)). Em 1987, lançou o LP “Meu cantar é tempestade de saudade”, no qual cantou “Por incrível que pareça”, de Paulo Massadas e Michael Sullivan, “Calçadas”, de Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós, “Tempestade de saudade”, de Gracia do Salgueiro e “Sem medo de amar”, de Gilliard. Em 1989, ao lado das cantoras Carmélia Alves, Rosita Gonzalez, Ellen de Lima, Violeta Cavalcanti e Zezé Gonzaga, atuou no “show” “As eternas cantoras do rádio”, que acabou virando um CD. Em 1990 realizou o espetáculo em comemoração ao aniversário da Rádio Cultura de São Paulo. Em 2000, foi homenageada em show do cantor Elymar Santos, no Canecão, quando emocionou o público ao cantar “Ninguém me ama”, em cadeira de rodas, cercada por Jorge Goulart, Carmélia Alves e R. C. Albin. A partir de 2001, com o agravamento do seu estado de saúde, passou a maior parte do tempo em hospitais da zona norte da cidade do Rio de Janeiro (bairros da Tijuca e Andaraí) onde passou a morar Jorge Goulart desde 1992. Em 2005, no dia em que completaria 83 anos de nascida, foi saudada pelo jornalista Luís Pimentel com um artigo no Jornal do Brasil no qual ele dizia a respeito dela: “Nora estaria completando 83 anos e pelo menos 30 de total esquecimento Mas quem se sentir instigado pode dar uma vasculhada na coleção de discos desses amigos que gostam de “coisas antigas”, para um reencontro gostoso com a emoção, por intermédio de canções como “Ninguém me ama” e “Menino grande”, canções que revelaram o enorme compositor que era o cronista idem Antônio Maria, “De cigarro em cigarro”, de Luiz Bonfá, “Preconceito”, de Antônio Maria e Fernando Lobo, “É tão gostoso, seu moço”, de Mário Lago e Chocolate, “Aves daninhas”, de Lupicínio Rodrigues, “Se eu morresse amanhã”, de Antônio Maria, “Só louco”, de Dorival Caymmi, e “Vai mesmo”, de Ataulfo Alves, entre tantas. Endeusada no país inteiro, tornou-se a maior divulgadora da música popular brasileira no exterior, resultado de turnê que fez pela Europa, Américas, África, Oriente Médio e Ásia, juntamente com Goulart e vários outros cantores brasileiros”.
Cyro Monteiro, Nora Ney, Clementina de Jesus e Conjunto Rosa de Ouro
(Com Ataulfo Alves e suas pastoras)
(Com Cópia e Sua Orquestra)
ALBIN, R. C. O livro de ouro da MPB. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
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SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo. Volume1. São Paulo: Editora: 34, 1999.
Quais foram os casais mais famosos e interessantes da cena artística brasileira? Se você apostar em Vicente Celestino e Gilda de Abreu, ou em Tarcísio Meira e Glória Menezes, você está certa.
Mas, se você apostar em Jorge Goulart e Nora Ney, você acerta duplamente. Isto é, Jorge e Nora têm uma originalidade que os faz diferentes dos demais.
Ele tem a coragem – e até a dignidade – de afirmar que agora completam 50 anos de coabitação, e não de casamento de papel passado – apesar de terem-se casado há uns poucos anos, só para fins burocráticos.
Essa deliciosa transgressão social, digamos mesmo, essa fé no amor mútuo independente de protocolo, tornam Nora Ney e Jorge Goulart um casal único no nosso conturbado – e muito volúvel – meio artístico.
Conheceram-se em 1950, ambos apresentados por Carmélia Alves, até hoje a melhor amiga do casal.
Certa vez apresentei-os a um amigo comum em minha casa, como exemplo de um raro casamento que deu certo por tanto tempo. Ao que Nora retrucou com terna simplicidade: “Não, eu não sou esposa, eu sou companheira. Nós não somos casados, apenas vivemos juntos.”
Nora começou a despontar nos frenéticos programas de auditório da Nacional e nas penumbras das boates de Copacabana, tempos da fossa e do samba-canção.
Nora Ney – cujo nome artístico fora inspirado em Doris Day e que começou cantando em inglês – pisava na MPB com o pé direito ao lançar o jornalista Antônio Maria. O megassucesso “Ninguém me ama” transformaria Nora de imediato na rainha sensual do samba-canção dor-de-cotovelo. A voz grave, quase de travesseiro, foi dormir com a voz potente do tenor Jorge Goulart exatamente em 1951. Ela, divorciada, ele também. Juntaram os trapinhos e as almas também para sempre, numa das mais comovedoras uniões do Brasil. União, aliás, em todos os sentidos. Inclusive, no ideário político. Ambos foram os primeiros cantores do Brasil a ousar fazer excursões pela antiga Cortina de Ferro. Acusado de comunista em 1964, o casal esteve na primeiríssima lista de cassados da Rádio Nacional.
Lembro-me de que, quando escrevi e dirigi para Nora e Jorge o show “Casal 20”, 1976, na antiga Sala Sidney Miller da Funarte, fiz questão de colocar no roteiro um testemunho deles sobre a fé no socialismo, ou num mundo mais digno e justo. O público vinha abaixo e, invariavelmente, ambos terminavam o espetáculo em prantos.
Esses dois grandes artistas do Brasil são excepcionais figuras humanas, cuja dimensão nos faz acreditar que ainda há gente que vale a pena neste país.
A Som Livre acaba de reeditar dois elepês gravados em 1976 por Nora Ney. O primeiro, “Jubileu de ouro”, ela o divide com Jorge Goulart, que honra suas tradições de sambista ao interpretar jóias como “Divina dama” (Cartola) e “Os cinco bailes da história” (Silas e Dona Ivone Lara). O segundo, “Tire o sorriso do caminho”, recria algumas canções imortais por Nora como “Preconceito” e “Ninguém me ama” (ambas de Antônio Maria) ou o visceral “Bar da noite”, pepita de Bidu Reis e Haroldo Barbosa.
Tanto Goulart quanto Nora estavam em plena forma quando gravaram estes dois discos em 1976. Agora, um quarto de século depois, os discos espelham um precioso legado: a rara sedução das vozes de ambos.
Ricardo Cravo Albin